Quando sobreviver é preciso

16/09/2013 às 21:54 | Publicado em Jornalismo Literário, Literatura, Livros, Memórias, Resenhas | Deixe um comentário

Gostei de ler “O que os cegos estão sonhando”, de Noemi Jaffe. O livro é dividido em duas partes. A primeira traz o diário de Lili Jaffe, na época Stern, no período de 1944 a 1945. Esta parte registra o período passado como prisioneira dos nazistas em Auschwitz. Hoje com 86 anos, Lili narra de forma comoventemente singela o cotidiano do terrível campo de extermínio, onde trabalhou na cozinha dos prisioneiros, bem como quando foi salva pela Cruz Vermelha e levada à Suécia — onde redigiu o diário que hoje se encontra no Museu do Holocausto em Jerusalém.

Chama a atenção a solidariedade praticada mesmo sob extrema vigilância, como quando levou quinino para um conhecido doente ou quando assumiu a culpa pelo roubo de um pouco de margarina em nome das três primas que com ela estavam. Acima de tudo, impressiona a aceitação dos fatos: “Não tínhamos medo do alarme, porque da morte não tínhamos medo, apenas do sofrimento” (p. 32). Como um rochedo, Lili parece aguentar as tormentas de um modo quase zen, como se não houvesse o que fazer senão agir com humanidade num ambiente desumano, enquanto esperava o turbilhão passar. E ele felizmente passou.

A segunda parte traz as reflexões da filha, a professora de literatura e crítica literária da Folha de S. Paulo Noemi Jaffe, sobre o diário da mãe, bem como as impressões dela e da filha, Leda, sobre a visita que fizeram em 2009 a Auschwitz. Mesmo depois de passar a vida ouvindo o relato materno (ela é nascida em 1962), Noemi ainda se impressiona com a força moral da mãe. Deve ser difícil se comparar, dia após dia, com um rochedo.

Monica Martinez

Avaliação

**** Leitura  Recomendável

Título: O que os Cegos estão Sonhando
Autor: Noemi Jaffe
Formato: 14 x 21
Páginas:  240
Editora: 34

A arte de reportar – perfis e outros escritos da The New Yorker

26/10/2011 às 15:08 | Publicado em Livros, perfis e biografias, Resenhas | Deixe um comentário

Dentro da Floresta (Companhia das Letras, 2006) é um dos seis livros escritos pelo jornalista David Remnick, o editor atual da revista The New Yorker (lançada em 1925, a publicação teve seletos cinco editores até agora, Remnick incluso).

Antes de comentar um livro, gosto de lê-lo e deixar passar um tempo, para que o conteúdo, digamos, assente dentro de mim. Tenho a sensação de que degustar uma leitura é algo muito próximo de saborear um bom vinho ou sentir um perfume de qualidade.

Em ambos, há aquela nota inicial, que nos faz gostar da obra de cara ou deixá-la na cabeceira à espera de um momento mais propício para leitura. Com suas 575 páginas, Dentro da Floresta ficou certo tempo me espiando, até que eu achasse que era hora de me debruçar sobre seu conteúdo.

O livro consiste em 23 perfis que Remnick escreveu para a The New Yorker, acrescido do posfácio de João Moreira Salles, o mentor da revista piauí! – ele também um refinado escritor de perfis.

Durante a leitura, há aquelas notas prazerosas que emergem ao saborear um bom tinto, quando se consegue identificar o terroir, isto é, os rastros da terra, do ar, da água, enfim, do meio ambiente que fazem o conteúdo de cada garrafa única. Neste caso, sentimos o repórter que trabalhou por anos no The Washington Post, aquele olhar atento de quem sabe que é a partir da pesquisa e da apuração que um bom texto emerge. Neste contexto, um dos destaques do perfil do ex-primeiro ministro britânico Tony Blair  é a constrangedora entrevista concedida a dois apresentadores mirins de um programa de televisão de variedades. O perfil, escrito em 2005, não por acaso é intitulado A Campanha do Masoquismo.

Há que se mencionar que em outros perfis de políticos, sobretudo os muito distantes da realidade brasileira, poderão considerados enfadonhos pelo leitor brasileiro médio.  Claro que não o de Vladimir Putin, aqui magistralmente descrito como um sujeito visto pelo povo russo como um cara normal, que faz o que pode. Alias, é nítida a familiaridade que ele tem com a região (ele foi correspondente do Post na União Soviética até 1991 e ganhou um Pulitzer em 1994 pelo livro Lenin´s Tomb).

Mais recentemente tenho me fixado no efeito residual que a leitura de uma obra propicia. Como um vinho especial que deixa uma marca inesquecível.  Esta marca pessoal de Remnick, neste livro, se faz notar pelos perfis de boxeadores e escritores.

Remnick registra o ocaso da paixão estadunidense pelo boxe, que produziu obras primorosas como o livro A Luta, de Norman Mailer, e perfis magistrais como o de Gay Talese, Joe Louis: o rei na meia idade (do livro Fama & Anonimato, ambos da Companhia das Letras). O livro de Remnick traz um perfil de Tyson, claro, mas destaco o sobre o treinador de boxe Teddy Atlas, talvez porque ele fuja do estereótipo do herói e seja apresentado como um mortal comum.

Como não poderia deixar de ser, Remnick perfila escritores. Entre eles, Philip Roth – atualmente considerado o principal escritor sênior estadunidense. Mas destaco o perfil feito de Don DeLillo, onde este filosofa sobre a notícia como a narrativa de nosso tempo.

Na ótima resenha de Dentro da Floresta feita para o jornal The New York Times, o escritor estadunidense Pete Hamill começa citando Ezra Pound que, em ABC of Reading, de 1934, dizia que “Literature is news that stays news”. Algo como literatura é notícia que permanece uma novidade. Ou seja, toca-se aqui no ponto central que une jornalismo e literatura, deixando ambos com aquele toque atemporal que encanta pessoas de todos os tempos. Seria como degustar um vinho mais do que especial.

Não é fácil escrever um texto de não ficção, bem apurado, que não seja apenas lido com prazer, mas que cative um espaço no coração e na memória do leitor. Em alguns casos Remnick consegue o feito. Por outro lado, a vantagem de uma coletânea de perfis é que o leitor fica muito à vontade para fazer sua própria seleção, concordando e, por que não, discordando do resenhista. Esta liberdade de escolha, aliás, não tem preço.

Confesso que não entendi o título, o tal Dentro da Floresta. O original, proposto pela decana Lilian Ross, é muito melhor: Reporting – Writings from The New Yorker. Ross, para quem não se lembra, é autora de Filme, também publicado na coleção Jornalismo Literário da Companhia das Letras – livro que inspirou novos jornalistas como Truman Capote.

Monica Martinez

Livro-reportagem sobre o Dalai-Lama

07/07/2009 às 11:40 | Publicado em Resenhas | Deixe um comentário

Interessante a leitura de O Caminho Aberto: um dalai-lama na era global, lançamento da Companhia das Letras.

A obra é escrita pelo jornalista Pico Iyer, que cobre a questão tibetana há mais de 20 anos para publicações como a Time e a The New Yorker.

Confira o trecho final, um dos mais bonitos da obra:

“(…) fui visitar o dalai-lama justamente no dia em que ele soube da concessão do prêmio Nobel, em 1989. Na ocasião, ele participava de uma reunião com cientistas em um local ao sul de Los Angeles, e após saber da notícia pelo rádio e ao passar por Santa Barbara, resolvi levar-lhe meus parabéns e algumas perguntas para um entrevista. Quando cheguei à casa onde ele estava hospedado, o dalai-lama me recebeu com a característica hospitalidade e franqueza, como se fosse um dia qualquer (como creio que era), levando-me pela mão a uma sala lateral como se tivesse todo o tempo do mundo, e tendo o cuidado de olhar em torno, automaticamente, em busca de uma cadeira para me acomodar, como se fosse eu o homenageado. Ele me perguntou como deveria usar o dinheiro do prêmio e fitou-me com olhos penetrantes, visivelmente esperando uma resposta. Disse-me que às vezes achava que nunca poderia fazer o suficiente e que nada do que fazia tinha de fato alguma influência sobre os acontecimentos (preocupação presciente e de longo alcance, pois após haverem amainado a excitação e a impressão de possibilidades que o prêmio suscitava, o Tibete se encontrava a apenas dez anos de sua destruição). Disse-me que “somos nós, pobres seres humanos, que temos de fazer o esforço”, dando um passo de cada vez; e novamente, como se invocasse as palavras finais de Buda, falou de “esforço constante, esforço incansável, para perseguir objetivos claros com empenho genuíno”.

Em seguida, quando saíamos da sala, ele voltou para apagar a luz. É uma coisa tão pequena, observou, que quase não faz diferença. No entanto, não custa nada fazê-la, e talvez alguma coisa boa resulte disso, caso um número maior de pessoas se lembre desse gesto simples em um número maior de salas.

Voltei para Los Angeles em meu carro e mandei meu artigo (a um editor que não tinha grande interesse pelas ideias de um monge tibetano e que praticamente desconsiderou o texto). Tratei de cuidar de minha vida, e estive de novo com o dalai-lama alguns meses mais tarde, quando ele foi a Santa Barbara logo depois que minha casa foi destruída por um incêndio e eu perdi tudo o que tinha.

Mais ou menos 6 mil dias após aquela manhã, quando voltou a viajar até o Japão [onde o jornalista agora reside], pensei naquele simples gesto de apagar a luz. Parecia-me que em cada um daqueles 6 mil dias eu havia tido uma revelação, percebera alguma sabedoria, anotara algumas frases que lera ou meditara sobre o significado do universo, a maneira de levar uma vida melhor, a essência da alma, a irrealidade da alma. Tive mais centelhas e lampejos do que poderia ter tido durante os 6 mil anos seguintes. No entanto, agora, nesta bela manhã de outono, não consigo me lembrar de nenhum deles, exceto a tarefa simples e prática de apagar a luz. Nada de iluminação, nada de caridade universal, nem a Regra Áurea, nem a sabedoria dos tempos; apenas algo que eu podia fazer todos os dias.

Voltei para casa após ouvir o dalai-lama naquela ilha ensolarada e saí para caminhar. Fechei a porta ao sair e já ia girando a chave na fechadura quando me lembrei daquele dia distante. Abri de novo a porta e apaguei a luz”.

Iyer, Pico. O Caminho Aberto: um dalai-lama na era global. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 278-279.

Histórias insólitas para ler em julho

29/06/2009 às 15:55 | Publicado em Resenhas | Deixe um comentário
A premiada tradução de Mamede Mustafa Jarouche
A premiada tradução de Mamede Mustafa Jarouche

É de tirar o fôlego a leitura do Livro das Mil e uma Noites (Globo), em tradução direta do árabe feita pelo professor da Universidade de São Paulo, Mamede Mustafa Jarouche.

 A história é conhecida: depois de ser traído pela mulher, poderoso rei  mata as jovens esposas  após a consumação do casamento.

A maldição segue até que ele se case com Sahrazad,  tremenda narradora cujas histórias, “agradáveis e insólitas” como diz sua irmã,  seduzem não apenas o soberano, mas também o leitor.

Uma ótima pedida para apreciadores de narrativas míticas desfrutarem durante as férias.

Monica Martinez 

Por dentro das raves

26/05/2009 às 12:49 | Publicado em Resenhas | Deixe um comentário

 

Universo Paralello 2009. Foto de divulgação

Universo Paralello 2009. Foto de divulgação

Para escrever seu novo livro, Festa Infinita: o entorpecente mundo das raves (Ediouro), o jornalista Tomás Chiaverini mergulhou em dez desses eventos que duram mais de 24 horas, regados a muita música eletrônica.

Disponível na rede, o primeiro capítulo da obra permite conferir o texto enxuto e bem apurado do ex-repórter da Folha de S. Paulo. 

No prefácio, o jornalista Ricardo Kotscho enfatiza que  o trabalho do autor “cumpre com competência a missão de lançar um brado de alerta sobre a preocupante realidade desse “entorpecente mundo”, no qual mergulham de cabeça, quase todos os dias, muitos milhares de jovens em busca de novas — e perigosas — experiências”.

Na verdade, no melhor estilo literário, Chiaverini não está preocupado em denunciar, mas sim em mostrar ao leitor esse, como ele diz, moderno ritual de êxtase coletivo”  que atrai 500 mil jovens (e não tão jovens assim) brasileiros por mes.

Chiaverini é autor de Cama de Cimento, também da Ediouro.

Texto: Monica Martinez

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